Às vezes, quase sempre, fico pensando no quanto nós – fãs dos Beatles de verdade, somos privilegiados, quase abençoados e recompensados pelo tamanho do nosso amor. Qual outra banda ou artista na história da música pode ser um assunto tão inesgotável quanto os Beatles, mais de 50 anos seguidos? Nenhum. Todos os anos, principalmente perto do natal, livrarias e lojas de discos se enchem de produtos Beatles. São CDs, DVDs e... livros! Cada um mais legal do que o outro e de autores tão distintos. Um é fotógrafo, outro é jornalista, outro é engenheiro de som, outro é apenas escritor e pesquisador incansável. Ok, custa uma grana estar sempre atualizado com a maior e melhor banda de todos os tempos, mas é um sacrifício muito prazeroso e gratificante. O retorno é imediato.
Finalmente, depois de quase dois meses e tantas interrupções, consegui terminar de ler o livrão “Here, There And Everywhere – Minha Vida Gravando os Beatles”, com as memórias do homem que foi trabalhar no complexo dos estúdios da EMI (ainda não se chamava Abbey Road) ainda menino e participou, praticamente de todas as sessões de gravação que os Beatles fizeram lá. Geoff Emerick começou a trabalhar no estúdio localizado em Abbey Road em 1962, com apenas 16 anos como engenheiro assistente e foi promovido a engenheiro de som em 1966, saindo apenas para tentar reconstruir, em 1969, o natimorto estúdio dos Beatles na Apple. Depois do fim da banda, continuou a trabalhar com Paul McCartney, além de vários outros artistas. Ele dividiu sua obra em 17 capítulos por ordem cronológica: 1- Tesouro escondido; 2- Abbey Road; 3- Conhecendo os Beatles; 4- Primeiras sessões; 5- Beatlemania; 6- A noite de um dia duro; 7- Inovação e invenção – o making of do Revolver; 8- Começa Sgt. Peppers; 9- Uma obra-prima toma forma – o conceito do Pepper; 10- All You Need Is Love, Magical Mystery e Yellow Submarine; 11- O making of do Álbum Branco – o dia que eu pedi demissão; 12- A calmaria depois da tempestade; 13- Uma bigorna, uma cama e três pistoleiros – o making of do Abbey Road; 14- O passeio final pela Abbey Road; 15- Os anos na Apple; 16- Esgotos, lagartos e monções – o making of de Band On The Run; 17- A vida após os Beatles. O epílogo é assinado por Elvis Costello, com quem Emerick gravou e produziu vários álbuns.
Geoff Emerick conta, às vezes (muitas) com riqueza de detalhes, tudo o que ele viu, sentiu e principamente, ouviu diretamente vindo da fonte, as maiores músicas dos maiores compositores do sécuo XX, muitas vezes criadas na frente dos seus olhos e ouvidos tão apurados. Emerick conta toda a história da sua vida e como consseguiu, ainda moleque, um emprego no maior e melhor estúdio de Londres. Meses depois, conheceria os Beatles e esteve com eles desde o começo até o final. Detalhes preciosos de seus melhores trabalhos – "Tomorrow Never Knows", "Sgt. Pepper’s" e "Abbey Road". Depois de terminar o livro, a gente compreende claramente porquê qualquer álbum dos Beatles, tem uma sonoridade e uma qualidade incrivelmente absurdas, se comparados com qualquer outro artista ou banda contemporâneo a eles. Presley, Dylan e os Rolling Stones, perdem feio, de longe! Todo o time técnico dos estúdio do clomplexo EMI (só passou a ser Abbey Road depois do álbum), capitaneados por George Martin, faziam muita diferença. Eles eram o que de melhor havia em Londres e os Beatles sabiam disso melhor do que ninguém. Geoff Emerick tornou-se peça fundamental para o som que os Beatles queriam, e sabiam que só ele poderia conseguir. “Quero que minha voz pareça a do Dalai Lama falando alto de uma colina”, “Meu baixo está abafado”, “Dá para melhorar o som da bateria de Ringo?”. Dava, tinha que dar. Algumas passagens são realmente divertidas como uma noite, durante as remixagens de Let It Be. Um Phil Spector completamente louco e fora de sí, gritava e gesticulava para todos: “Quero mais eco!!!”, “Quero mais reverb!”. Ringo era o único Beatle presente naquela sessão e em certo momento pegou o produtor (que estava armado) pelo braço e o levou para uma conversinha particular no corredor. Quando voltaram, Spector estava mais calmo e só assim o trabalho pôde continuar. Em outro trecho, conta a forma como John Lennon gostava de atormentar a vida de Brian – o empresário. Ainda no início da Beatlemania, foi anunciado que os Beatles seriam a principal atração do Royal Variety Show, que aconteceria em uma semana, um concerto beneficente para a aristocracia inglesa. Foi quando, para desespero de Brian, Lennon sapecou: “Vou mandar todos chacoalharem as malditas porras das jóias”. Incentivado por Paul, que dizia “duvido! Você não tem coragem”, Lennon não voltaria atrás. Brian praticamente implorou para que ele não dissesse aquilo. Mas ele disse, mesmo que, na hora H, tenha deixado de fora os palavrões. Outro trecho bem legal é quando os Beatles voltam da Índia e se encontram no estúdio novamente para trabalhar no que seria o álbum Branco. Para Emerick, já havia uma energia negativa ali. Para ele, foi ali que realmente houve uma rachadura. Uma ruptura que jamais poderia ser consertada ou emendada como uma fita magnética. Lennon e Harrison, deliberadamente, aumentavam o volume de suas guitarras ao máximo numa possível intenção de sufocar o baixo de Paul. E foi durante essas primeiras sessões que os Beatles, pela 1ª vez, quase trocaram sopapos no estúdio. A gravação de Ob La Di – Ob La Da, se arrastou por dias-sem-fim para desespero de Lennon e Harrison. Era a resposta de Paul. Mais na frente, quando estavam na sala de controle finalizando “I Want You (She’s so heavy), pertinho do final, Lennon decretou: “corte a fita aqui!”. Todos se entreolharam se questionando como aquilo era um absurdo. Mas não havia como discutir.
Aqui, a gente confere uma parte muito bacana sobre uma das últimas sessões de gravação do Abbey Road. Todos estavam trabalhando no processo de finalização de “The End”.
“Passamos os próximos dias fazendo overdubs e dando os toques finais em algumas canções. O foco foi rapidamente deslocado para a canção intitulada "The end", que pensávamos ser a que fecharia o álbum, por isso era muito importante. Havia uns poucos compassos vazios para serem preenchidos com o solo de bateria de Ringo — Paul tinha dito "vamos pensar em alguma coisa mais tarde", da mesma forma que havia feito com a parte do meio de "A day in the life"— e houve uma longa discussão sobre o que adicionar para completá-la. "Bem, um solo de guitarra é a coisa óbvia", disse George Harrison. "Sim, mas dessa vez você deve me deixar tocar", disse John, meio que brincando. Ele gostava de tocar guitarra solo durante os ensaios, mas sabia que não tinha o requinte de George ou Paul, então ele raramente o fazia na gravação. Todos riram, inclusive John, mas pudemos ver que ele estava falando muito sério. "Já sei!", ele disse, maliciosamente, sem vontade de encerrar o assunto. "Por que não tocamos todos o solo? Podemos revezar e trocar pequenos fraseados. Solos longos de guitarra com "duelos" de guitarristas estavam se tornando moda na época, por isso foi uma sugestão que claramente tinha mérito. George não estava confiante, mas Paul não só abraçou a ideia, como também foi ainda mais longe:"Melhor ainda", disse ele,"por que nós três não tocamos ao vivo?". Lennon adorou a ideia; pela primeira vez em semanas, vi um brilho real nos seus olhos. Não demorou muito para o entusiasmo de John passar para George, que finalmente entrou no clima. Mal Evans foi imediatamente enviado para o estúdio para configurar os amplificadores de guitarra, enquanto os três Beatles ficaram na sala de controle, ouvindo a base e pensando sobre o que eles iriam tocar. Paul anunciou que queria fazer o primeiro solo, e uma vez que a canção era sua, os outros aceitaram. Sempre competitivo, John disse que teve uma grande ideia para o fim, por isso ele viria por último. Como sempre, o pobre George Harrison foi ofuscado por seus dois companheiros de banda e ficou no meio. Yoko, como de costume, estava sentada ao lado de John na sala de controle enquanto eles estavam tendo essa discussão, mas, quando Lennon se levantou para sair para o estúdio, ele se virou para ela e disse suavemente: "Epere aqui, amor, não vai levar mais de um minuto". Ela pareceu ter ficado um pouco chocada e magoada, mas ela fez o que ele pediu, sentando-se próxima à janela da sala de controle assistindo ao restante da sessão. Foi quase como se John soubesse que ela iria estragar a atmosfera se estivesse no estúdio com eles. Algo disse a John que, para fazer aquilo funcionar, ele deveria estar apenas com Paul e George, e que seria melhor que Yoko não estivesse ao lado dele naquele momento. Talvez fosse esse o motivo, ou talvez porque em algum nível subconsciente eles decidiram suspender seus egos em prol da música, mas durante o período de aproximadamente de uma hora que eles levaram para gravar aqueles solos, toda a hostilidade, toda a disputa, tudo de ruim que havia entre os três antigos amigos foi esquecido. John, Paul e George pareciam ter voltado no tempo, como se fossem crianças de novo, tocando pelo simples prazer de tocar. Mais do que tudo, eles me lembraram de pistoleiros, com suas guitarras a tiracolo e olhares de aço, determinados a superar um ao outro. No entanto, não havia nenhuma animosidade, não havia nenhuma tensão, qualquer um poderia ver que eles estavam apenas se divertindo. Enquanto eles estavam praticando, tomei muito cuidado em criar um som diferente para cada Beatle, de modo que seria aparente ao ouvinte que eram três pessoas tocando e não apenas uma pessoa fazendo um solo estendido. Cada um deles estava tocando uma guitarra de modelo diferente e através de um tipo diferente de amplificador, por isso não foi tão difícil alcançar o que eu queria. Fiz com que Mal alinhasse os três amplificadores em uma fileira — não havia necessidade de uma grande separação, porque todos seriam gravados em um único canal. Havia pouca sobreposição entre cada solo de dois compassos, então eu sabia que poderia equalizar os níveis mais tarde, simplesmente mexendo no botão de volume. Incrivelmente, após apenas breve período de ensaio, deu tudo certo em um único take. Quando acabou, não houve tapinha nas costas ou abraços — os Beatles raramente se expressavam fisicamente —, mas vimos um monte de sorrisos largos. Foi um momento emocionante — uma das raras vezes em que eu pude dizer isso nos últimos meses —, e eu fiz questão de felicitar cada um deles quando entraram na sala de controle para ouvir o resultado. Eu estava tão impressionado pela performance de Harrison em particular, que fiz questão de dizer "Aquilo foi realmente brilhante" assim que ele entrou pela porta. George parecia um pouco surpreso, mas ele me deu um aceno com a cabeça e um gracioso "obrigado". Foi uma das poucas vezes em que me senti como se eu tivesse me ligado a ele em um nível pessoal. Acredito que tenha havido também a possibilidade de que, enquanto estavam tocando, eles tenham percebido que poderiam nunca mais tocar juntos; talvez eles estivessem vendo naquele momento uma despedida comovente. Foi a primeira vez em muito tempo que os três estavam realmente tocando juntos no estúdio; na maioria das sessões do Abbey Road haveria apenas um ou dois deles, e algumas vezes, Ringo. Além disso, eles sabiam que essa faixa encerraria o álbum; parecia já ter sido decidido que "The big one", como chamavam o medley, faria parte do lado dois do álbum, em contraste com o lado um, que conteria canções individuais, abrindo e fechando com composições de Lennon. Para mim, aquela sessão foi sem dúvida o ponto alto do verão de 1969, e ouvir aqueles solos de guitarra ainda me faz sorrir até hoje. Se os bons sentimentos engendrados por aquele dia estivessem presentes ao longo de todo o projeto, imaginem como o Abbey Road poderia ter sido ainda mais grandioso!”
Fiquei com vontade de ler o livro.
ResponderExcluirLivro fundamental! Leitura cativante. O senão é que notei que o Geoff diminuiu muito o George. Talvez pra justificar o domínio de Lennon/McCartney.
ResponderExcluirTenho o meu. Já li duas vezes e tô com vontade de ler outra vez. É demais. Li também (já estou na segunda leitura) "A batalha pela alma dos Beatles", outro livraço. Recomendo os 2. Valeu, Edu.
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