quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O DIA QUE GEORGE HARRISON ABANDONOU O GRUPO


Assim como Ringo Starr desistiu temporariamente dos Beatles em agosto de 1968, no dia 10 de janeiro de 1969, George Harrison também perdeu a paciência por não se sentir mais capaz de tolerar as tensões dentro do grupo. Os Beatles estavam no Twickenham Film Studios, onde tudo que faziam, estava sendo capturado pelas câmeras de Michael Lindsay Hogg. O dia começou com Paul McCartney trabalhando sozinho em um piano, tocando várias músicas em que o grupo estava trabalhando durante a semana anterior. Estas incluíram versões em solo de I've Got A Feeling e Get Back, que geralmente eram realizadas com guitarras. Os Beatles, ainda como um grupo, trabalharam duro em Get Back durante a manhã. Após várias tentativas passaram para Two Of Us. Quando chegou a hora do almoço, George literalmente, botou a viola no saco e foi embora sem dizer uma palavra sequer. Seja por negação ou descrença, os três Beatles restantes + Yoko Ono, continuaram ensaiando sem Harrison. A triste verdade, é que esta situação já vinha se arrastando há tempos, desde que Yoko Ono apareceu.

Para as sessões de Let It Be, George havia composto “All Things Must Pass", “Hear Me Lord” e “I Me Mine”. Somente essa última se­ria gravada pelos Beatles. As outras duas, além de muitas outras rejeitadas pela ban­da, viriam a compor seu aclamado álbum solo de estreia, All Things Must PassPara piorar as coisas, George havia re­centemente passado um tempo com Bob Dylan em Woodstock e juntos fizeram uma mú­sica, “If Not for You”. John e Paul nunca se ofereceram para compor com George. Os dois o haviam ajudado em algumas de suas composições, mas não tinham estendido a mão como Dylan. Essa ferida doeu gravemente. Talvez o problema de John e Paul com o novo material de George fosse a natureza mística das canções. De fato, o desenvolvi­mento espiritual de George estava começan­do a lançar raízes. Desde 1965, ele explorava diferentes religiões, mas acabara se encon­trando com o movimento Hare Krishna, a Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna. Ele ficou impressionado com a humildade e a falta de interesse pelo consumismo ocidental dos seguidores. George ficou amigo deles, lhes deu dinheiro e escreveu sua canção mais famosa, “Something”, com Krishna em men­te. Certa noite em casa, ele explicou que ti­vera de trocar a letra. Um Beatle cantando sobre “ele” em vez de “ela” tinha grande chan­ce de causar mal-entendidos, o que levou à alteração na letra.

No dia em que George saiu furioso do Twickenham, a banda + Yoko passaram a tar­de improvisando: Ringo batucou algumas levadas esquisitas, Yoko fez sua parte com os gritos, John entrou com a microfonia da gui­tarra e Paul esfregou o baixo para cima e pa­ra baixo do amplificador. Dois dias depois, todos foram à casa de Ringo para tentar acer­tar as diferenças. De imediato, George citou suas objeções, dizendo que o combinado era que a reunião seria limitada aos quatro mem­bros do grupo. John alegou não ter sido avi­sado. E George então foi embora dizendo não acreditar nele, indo para a casa dos pais em Liverpool. Dias depois, os quatro Beatles se en­contraram novamente no escritório da Apple. Houve algum progresso. George aceitou vol­tar. Mas somente com a condição de desisti­rem da ideia do show ao vivo e esquecerem Twickenham. Então, a harmonia voltou. Mas isso duraria bem pouco tempo.

O filme 'Let It Be' [1970] contém cenas daquele 10 de janeiro de 1969, mas a saída de George foi omitida da edição final. Somente o livro 'The Beatles: Anthology' [2000] revela alguns detalhes do episódio, nas palavras dos próprios Fab Four. Fonte: whiplash.net
Ringo: Paul e George não estavam se dando bem naquele dia e George decidiu partir, mas não contou nem para John, nem para mim ou Paul. As discussões sempre aconteciam, então até irmos almoçar nenhum de nós percebeu que George tinha ido para casa. Quando voltamos ele continuou ausente, então começamos uma jam violenta. Paul tocou seu baixo contra o amplificador, John estava 'viajando' e eu toquei umas batidas estranhas que nunca tinha feito antes. Eu não toco daquela maneira regularmente. Nossa reação foi muito, muito interessante naquele momento. Yoko entrou no meio, claro; ela estava lá.

Paul: De fato George saiu do grupo. Não tenho certeza do motivo exato. Penso que eles achavam que eu estava sendo muito dominador. É fácil para alguém como eu, que faz as coisas acontecerem, ter uma abordagem forte demais. Revendo o filme, vejo que pareço alguém com uma postura um pouco pesada demais, particularmente por ser apenas um membro da banda e não um produtor ou diretor. De minha parte era apenas entusiasmo, mas levou a alguns arranca-rabos, e num deles George disse 'Certo. Não vou aturar isso!'. Provavelmente eu estava sugerindo o que ele poderia tocar, o que é sempre algo complicado numa banda.

George: Eu tinha estado com Bob Dylan e a The Band no Woodstock e me diverti muito. Voltar para o 'inverno do descontentamento' com os Beatles em Twickenham foi algo infeliz e nada saudável. Um dia houve uma discussão entre Paul e eu. Está no filme: você pode vê-lo dizendo 'bem, não toque isso'. Eu digo: 'tocarei o que você quiser, ou nem vou tocar se você não quiser. Qualquer coisa que for te agradar, é o que vou fazer'. Estavam filmando nossos desentendimentos. A coisa não chegou a explodir, mas pensei 'qual o sentido disto? Sou bem capaz de ser relativamente feliz por mim mesmo e não dá para ser feliz nesta situação. Vou embora daqui'. Todos tinham passado por isso. Ringo já tinha saído num dado momento. Eu sabia que John queria dar o fora. Foi um período muito, muito difícil e estressante, e ainda ser filmado discutindo foi terrível. Levantei e pensei: 'Não vou mais fazer isso. Estou fora'. Então peguei minha guitarra, fui para casa e compus Wah Wah naquela mesma tarde.
John: Em suas 'viagens', Paul achou que era hora de outro filme dos Beatles ou algo assim, ou queria que voltássemos para a estrada, ou que simplesmente fizéssemos algo. Como de costume, George e eu dizíamos 'oh, não queremos fazer isso'. E ele meio que armou as filmagens. Havia muitas discussões sobre o que fazer. Eu apenas acompanhava, já tinha Yoko comigo e estava cagando para tudo [N. do T.: 'didn't give a shit about nothing']. Estava chapado o tempo todo também, heroína, etc. Eu simplesmente estava cagando para aquilo - todos estavam.

Paul: Num grupo as coisas são democráticas e ele não precisava me ouvir, então acho que ele ficou puto comigo trazendo idéias o tempo todo. Provavelmente, para ele, era apenas minha tentativa de dominar. Não era o que eu estava tentando - mas era assim que soava. Isto, para mim, foi o que eventualmente separaria os Beatles: comecei a sentir que ter ideias não era uma boa ideia. Quando tocamos 'Hey Jude' pela primeira vez, cantei o primeiro verso e George respondeu 'nanu nanu' com sua guitarra. Continuei,'Don't make it bad…' e ele respondeu: 'nanu nanu'. Ele estava respondendo cada verso - e eu disse 'Ei! Espere um pouco, não acho que queiramos isso. Talvez você devesse entrar com respostas de guitarra depois. Por ora acho melhor começarmos da maneira simples'. Insisti, pois aquilo era importante para mim, mas é claro que, se você diz isso a um guitarrista, e ele não gosta da idéia tanto quanto você, parece que você o está tirando da jogada. Acho que George sentia isso. Era algo do tipo "desde quando você vai me dizer o que devo tocar? Estou nos Beatles também'. Consigo entender seu ponto de vista. Mas isso me afetou, e aí eu não conseguia mais ter idéias livremente. Comecei a pensar duas vezes sobre tudo o que ia dizer - 'espere um minuto, será que vai parecer que estou forçando?' Enquanto que, no passado, era só 'bem, é isso aí, isso seria uma boa idéia. Vamos tocar esta música chamada Yesterday. Ficará tudo bem'.

George: Chegou uma hora, provavelmente na época do Sgt. Pepper's (talvez por isso eu não tenho curtido ele tanto assim), em que Paul tinha uma idéia fixa sobre como gravar suas músicas. Ele não estava aberto a sugestões de mais ninguém. John sempre foi muito mais aberto quando o assunto era tocar uma de suas canções. Isso levou às situações mais inusitadas. Eu abria o case da minha guitarra e Paul dizia 'não, não vamos fazer isso ainda. Vamos fazer uma pista de piano com Ringo, e depois faremos isso'. Chegou a um ponto em que havia muito pouco a fazer, a não ser ficar sentado lá ouvindo-o cantar 'Fixing a hole' com Ringo mantendo o tempo. Aí ele adicionava o baixo e tudo o mais. A coisa se tornou sufocante. No 'Let It Be' deveríamos nos livrar desse tipo de gravação; voltamos a tocar juntos. Mas ainda era mesma situação, em que ele já tinha na cabeça o que queria. Paul não queria que ninguém tocasse em suas músicas até ele decidir como deveria ser. Para mim foi algo como 'o que estou fazendo aqui? Isto é doloroso!'.

Paul: Depois que George foi embora tivemos uma reunião na casa do John, e acho que seu primeiro comentário foi 'vamos colocar o Eric [Clapton]'. Eu disse 'não!'. Acho que John estava meio que brincando. Pensamos 'não, espere um minuto. George saiu e não pode ser assim - não é bom o suficiente. George saiu porque sentia que que estavam dizendo-lhe o que fazer (acho que foi esse o motivo). Ringo tinha saído antes porque não achava que gostássemos dele como baterista. Essa não foi tão difícil de resolver como talvez tenha sido o lance do George. Ao mesmo tempo, John estava procurando se esquivar da situação. Acho que todos sentiámos que algumas rachaduras estavam aparecendo no edifício.

John: Quando os Beatles chegaram a seu auge, estávamos diminuindo uns aos outros. Limitávamos nossa capacidade de compor e tocar ao termos que encaixar tudo em algum tipo de formato. Por isso aconteceram os problemas. Quando chegamos ao 'Let It Be', não conseguíamos mais jogar o jogo. Podíamos enxergar as disposições uns dos outros, e logo ficou desconfortável, porque até ali acreditávamos intensamente naquilo que fazíamos e no que lançávamos. Tudo tinha que estar na medida. De repente não acreditávamos mais. Chegamos a um ponto onde não existia mais magia criativa.

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