domingo, 6 de março de 2011

UM DIA QUE ENTROU PARA A HISTÓRIA DA CAPITAL

Dear friend, dizem que é perda de tempo ficar olhando para o passado. Mas certas histórias da nossa vida devem ser lembradas. De alguma forma elas nos influenciaram e o exercício de trazê-las à tona, muitas vezes, pode nos dar um grande prazer. Lembrar da Rockonha é uma dessas boas histórias que vivi. Como era bom ter dezessete anos. E agora, 30 anos depois, pude voltar àquela festa. O que conto aqui são fragmentos de uma noite estranha, pois apesar de despertar o medo em muitos, abriu os olhos de tantos outros naquele início de década. Não nos conhecíamos na época, mas tenho a certeza de que se tivéssemos nos encontrado, a amizade seria instantânea. Um grande abraço e obrigado pelo espaço no Baú.
Eu também dancei. A festa que aparece na música Faroeste Caboclo, de Renato Russo, rolou de verdade. Só que não foi organizada pelo Jeremias, maconheiro sem vergonha, como diz a letra. Foi uma festa que não chegou ao fim. Estávamos em agosto de 1980, num sítio nos arredores de Brasília. O país marchava no compasso do militarismo que prenunciava o seu fim. Havia um clima de mudança no ar, mas o pau continuava quebrando pra cima dos cidadãos comuns. Na capital, sem qualquer motivo, jovens eram abordados por policiais. Camburões brotavam de todos os lugares. Mão na cabeça! Abre as pernas! O que vocês estão fazendo aí?! Documento! Todas as noites você corria o risco de ser abordado e tomar um baculejo. Mal sabiam eles que essas atitudes só apressavam o fim da ditadura. Não havia internet nem redes sociais, mas de alguma forma havia uma interação entre todos nascidos nos anos sessenta. Rock and roll, liberdade. Flower power, liberdade. Drogas, liberdade. E na capital, a repressão parecia maior do que em todas as cidades. Talvez pelo aparente concreto da arquitetura, talvez pela uniformidade e setorização da urbanização, talvez pelo excesso de disciplina imposta aos funcionários públicos que habitavam a cidade. Só que nada disso estava mais ditando os passos dos jovens. Tudo era motivo para se rebelar e reafirmar a liberdade buscada por todos. E foi numa dessas ondas libertárias que um grupo de jovens de classe média resolveu fazer uma festa de arromba. E como forma de desafiar a polícia e o convencionalismo deram o nome de Rockonha. A primeira versão da festa foi tímida e restrita a um pequeno grupo de amigos. Mas aí veio a segunda e a história da grande festa começou a rolar de boca em boca. Não havia celulares, não havia internet. A notícia se espalhava pelo telefone e nos bares. Até chegar ao mais badalado bar da época, o lendário Beirute, na 109 Sul. Se alguém procurava por alguma festa, bastava passar pelo Beirute que aparecia uma coisa legal pra fazer. Nos primeiros dias rolou o boato de que a festa seria apenas para os convidados mais chegados. Mas, como se fosse uma bola de neve, a coisa foi crescendo e na noite da festa começou a pipocar o famoso convite por todas as mesas do Beirute e dos outros bares da 109. O texto impresso numa sugestiva seda dizia assim:
“Para matar as saudades, os delírios e as fissuras, a Rockonha vem convidar você para mais um som viajante baseado no bosque, a partir das 21h do dia 30-8-80. Agradecemos à Fucking Sound e contamos mais uma vez com a sua presença”.
Beleza, a noite estava garantida. Cada um deu o seu jeito de chegar. Ficamos no Beirute até as onze horas e pegamos o último ônibus rumo a Sobradinho. Em cada parada subia um grupo de malucos, de artistas e alguns ainda tímidos punks. No trajeto a onda foi crescendo e a descontração já tomava conta do ambiente. O motorista ouvia no rádio o hit da Gretchem. Em poucos instantes todos cantavam o refrão em coro “Conga la conga. Conga, conga, conga” Chegamos pouco antes da meia-noite. Logo o ônibus foi esvaziado e um motorista irônico nos desejava boa festa. Parece que ele sabia que alguma coisa estava por vir. O lugar já estava cheio e algumas pessoas segurando cães pastores recebiam os convites. A festa ia rolar no bosque e caminhamos aproximadamente 500 metros por uma estrada de terra. A noite estava linda, como costuma ser no mês de agosto em Brasília. Lembro que na escuridão, dois caras que já estavam loucos fumavam mais um e brincaram quando nós passamos “Ih, sujou, olha os caras aí. Todo mundo vai dançar”. Seria uma premonição? A festa prometia. Ao chegar no bosque um rock setentista rolava a toda altura nas caixas presas nas árvores. Não me lembro bem o que tocava, provavelmente era o Led. O clima estava perfeito. Uma fogueira no centro do bosque, uma barraca distribuindo bebida e muita gente se divertindo. Mais adiante, à beira da lagoa, havia outra fogueira. Decidimos ir até lá para iniciarmos nosso serviço. Passamos por uma porteira e neste exato momento um sinalizador de luz, como um foguete pirotécnico, brotou do chão. Comentei: Pô, os caras pensaram em tudo, que massa! No instante em que o sinalizador explodiu e clareou o ambiente, vi um cara totalmente de preto sair do mato e apontar um revolver para a cabeça de um garotão. A partir daí, a euforia cedeu lugar ao espanto. Gritos de comando mandavam todos pararem e se deitarem no chão. Na escuridão do cerrado, gritos apavorados eram misturados aos latidos raivosos dos cães da polícia. O medo dos jovens era sentido no ar. Homens de preto, homens do exército, cães irados. A música já não tocava mais. Ninguém estava autorizado a falar. Os que tentavam entender o que se passava eram reprimidos instantaneamente. Uma das minhas amigas tinha apenas quinze anos, talvez aquela fosse sua primeira grande festa. Ela estava em pânico. Tentei acalmá-la. Fomos levados para perto da fogueira. Os policiais revistavam-nos. Alguns homens tiveram que tirar a roupa. Logo fomos encaminhados para uma fila indiana. Em silêncio e com as mãos na cabeça. Não podia ser na nuca. “Eu falei mão na cabeça, rapaz!!!”. Caminhamos pela estrada de terra até a frente da casa principal. Sentamos no chão. Era um grande grupo. A cada instante chegavam mais e mais. Alguns gritos distantes eram ouvidos pelo cerrado adentro. Os PMs armados e as tropas de choque nos vigiavam e ninguém gostava daquela música urbana. E assim continuou a operação militar que estragou nossa festa. Os menores de idade foram separados dos maiores, os filhos de militares foram separados dos cidadãos comuns. E todos foram encaminhados em ônibus fretados para o quartel de Sobradinho. Alguns adultos foram liberados, outros não. Nós fomos transferidos para o juizado de menores na Asa Norte e lotamos o auditório. E de lá só saímos na companhia dos pais quando o dia já estava claro. No dia seguinte os jornais anunciavam a prisão de mais de 400 pessoas numa festa nada estranha onde só quem não foi convidado era gente esquisita. Na semana seguinte todos estavam nos bares, nas ruas, nos gramados, debaixo dos blocos, nas festas. Sim, as coisas estavam mudando.
*Não me lembrava do texto do convite na íntegra, até que o encontrei no livro Renato Russo – O filho da Revolução, do jornalista Carlos Marcelo. Uma boa leitura para quem quiser entender um pouco mais sobre a Brasília além da política. Até pouco tempo atrás eu tinha um convite. O que será que aconteceu com ele? Dedico este texto à minha irmã Magda, que estava lá comigo. Foi ela que nos anos setenta me mostrou o sagrado caminho do Rock'n'roll.

8 comentários:

Valdir Junior disse...

Nessa época eu ainda era um moleque que brincava de carrinho e lia gibi de super-heroi , não vivi essas experiências, mas tenho inveja de quem viveu pois foi o ultimo momento de contracultura verdadeiro que um jovem no Brasil teve ,
da lá pra cá o negocio é só enfraqueceu e hoje é só ficar doido por ficar e violência gratuita a vontade.

Abraço Edu e Hare Krishna !!!

João Carlos disse...

Nessa época eu tinha já 23 anos.Aqui rolava essas festas mas muito "discretas".Agora a garotada de Brasília escancarou.Mais entradas e bandeiras impossível.ROCKONHA ? Seria Rock em Noronha ?RSRSRS

andrezbeatle disse...

Queria ter morado em Brasília nessa época...

Anônimo disse...

oi meu nome é junior eu fui um dos integrantes da Fucking Sound lembro do Paulinho mineiro de itajuba e do outro sócio um branquinho do cabelo carapinha louro tipo judeu que morava no final da asa sul, eu e o Paulinho morávamos na 302 norte, nesta época tínhamos um caminhão ford V8 3/4 preto fosco com este belo nome estampado (Fucking Sound) nas portas, verdadeira afronta para "eles". marcelolipe@hotmail.com

TOCA DO LOBO BUNKER BAR disse...

Rapá...foi bom ler essa historia que fez parte da minha juventude de Brasilia...Dancei tambem...levei uma cacetada no dedo polegar que quebrou...ate hoje sinto ele como um marco das boas festas e tempo bom mesmo repressivo de Brasilia...mas era muito rock and roll...foi massa...a pesar de ficar tremendo demais...eu morava na epoca na 708 Norte e vivia no beirute..ate em festa daqueles raricrishinas eu ia pra tomar sopa de cebola...é muita historia...abraços

Anônimo disse...

Muito interessante ler a história. Me trazem muitas memórias. Estudava com o PC no curso Objetivo e estive nas duas Rockonhas...acabei no grupo de filhos(as) de militares. Já contei esta história ao meus filhos muitas vezes e meu filho, que hoje tem 25 anos, achou o fato narrado no Google...todas as referências são boas...Beirute na 109 trazem fantásticas lembrança. Hoje, com 52 anos e morando no exterior por mais de 17, me divirto lendo o fato documentado, lembranças de uma tempo de idealismo e ações de rebeldia que mudaram o perfil do País. Deliciosas as experiências que vivemos quando era ainda uma jovem no cerrado do planalto central. Obrigada pelo trabalho de escrever esta história. N. Cardoso

Unknown disse...

Meu nome é Marco! sou nascido e criado no Cruzeiro Velho! Nesse ano eu estava com 16 e estudava inglês na Thomas! Foi lá que eu e um amigo meu do Cruzeiro ganhamos um convite!
Como morávamos no Cruzeiro, saimos mais cedo pedidndo carona! Então chegamos antes da policia! Quando houve a batida,nos escondemos em um encharcado que havia ali por perto! Ficamos até o amanhecer e fomos embora! Não dançamos não! Foi muito louco! Jamais esquecerei!! Abraço a todos!

NEY NOBRE disse...

2022, dki 2 meses faço 60 anos, moro no MS, mas sou de Sobradinho DF, na época com 18 anos, qualquer coisa que fosse um ato de rebeldia nós atraia, e quando recebi o convite pra rockonha de uma amiga, a excitação, a euforia, e a sensação de transgredir foi mais alto que o medo. Uma hora andando , 30 mim de festa, polícia, exército, cães, gritaria, correria, água e lama até o meio das pernas, uma fuga de filme, e uma história pra contar anos depois, valeu a pena!!