Excelente artigo publicado na revista "Afinal" de 15 de março de 1988

Sérgio Vaz
Nesta era de fibra de vidro, continuo procurando por uma pérola, escreveu Bob Dylan em Dirge, de 1974. Seu amigo George Harrison poderia perfeitamente assinar embaixo a mesma declaração de princípios. Seu novo LP, Cloud Nine, que a WEA lançou no final de fevereiro no mercado brasileiro, é um disco extraordinário por diversos motivos – mas, principalmente, porque ele dispensou os aparatos modernosos, virou as costas para tudo que se inventou de tecnopop, despojou-se até (ainda bem) do seu fanatismo místico, e foi direto ao centro da questão, o princípio elementar, a pérola: o velho e bom rock”n”roll. Com direito, é claro, a uma ou outra balada. Tudo limpo, límpido, transparente, feito com competência, garra, paixão, alguma angústia, alguns piques de alegria, maturidade. Nada de massa sonora. Não há massas sonoras – essa praga dos anos 70 que em muitos casos insiste em sobreviver até este final de anos 80 - , nem efeitos de alquimias eletrônicas. “No meu tempo”, disse ele, “usávamos guitarras reais, teclados reais, baterias reais e pessoas reais.”
Deu certo – e não deu certo apenas porque George conseguiu, com este Cloud Nine, criar o melhor trabalho de seus 17 anos pós-Beatles, ao lado de All Things Must Pass, o primeiro, o álbum triplo de 1970. Deu certo também porque, como nunca tinha acontecido nestes anos todos, fez um tremendo sucesso. Em meados de um mês o LP – lançado na Inglaterra e nos EUA em outubro do ano passado – vendeu um milão de cópias e deu a ele seu primeiro disco de platina. (Depois da separação dos Beatles, apenas Paul McCartney tinha conseguido isso.) O que prova que, afinal de contas, havia muito mais gente do que se suspeitava interessada em pérolas e não em fibra de vidro.
É interessante que George tenha conseguido tudo isso – um trabalho belíssimo, marcante, a unanimidade da crítica americana e européia, a consagração popular – quando já ninguém falava dele, depois de cinco anos de absoluto silêncio (Gone Troppo, seu LP anterior, foi malhadíssimo, não vendeu nada e não tocou no rádio; “pra que fazer música se não vai tocar?”, ele se perguntou, durante esse intervalo de cinco anos). Parece mais uma peça que se ajusta perfeitamente nesse quadro estranho que é sua carreira. Durante oito anos como Beatle (e cada dia da época em que ele era um Beatle equivalia a dez anos, como ele diz agora), ele foi massacrado pelo poder e pelo talento transbordante da dupla central; para cada 13 composições de Lennon & McCartney, ele conseguia gravar uma sua. No álbum Branco, de 1968, por exemplo, conseguiu o feito inédito de gravar quatro músicas de sua autoria – só que contra 26 de Lennon & McCartney. Talvez por isso, pelo fato de ter tido criatividade represada, ele tenha partido, ainda em 1970, o ano da dissolução do conjunto, para o exagero do álbum triplo – lançando poucos meses depois, em 1971, outro álbum triplo, The Concert for Bangladesh, ainda que dividindo a cena com amigos como Bob Dylan. Depois desse começo copioso e competente, no entanto, o compsitor entrou meio em recesso, lançando apenas duas ou três boas canções em cada um dos LPs que se seguiram, até Gone Troppo, 0 11º da carreira solo. Eram, na maioria, trabalhos pouco criativos, sem brilho, e encharcados de misticismo.
Os cinco anos de silêncio – longe do carrossel, como diria John Lennon – fizeram um tremendo bem a George Harrison. (Coincidente ou emblematicamente, John Lennon também teve exatos cinco anos de silêncio entre Rock”n”Roll e seu retorno no esplendor da maturidade em Double Fantasy, de 1980.) Depois de cuidar de plantas em sua mansão e andar perdendo dinheiro produzindo filmes, George resolveu reunir alguns velhos amigos no estúdio que tem em sua casa: Ringo Starr na bateria, Eric Clapton na guitarra (“nós nos entendemos bem, até dividimos a mesma mulher”), Elton John no piano, Gary Wright (ex-Spooky Tooth) nos teclados e Jeff Lynne (ex-ELO) na guitarra, baixo, produção e co-autoria de várias músicas. O resultado foi um dos grandes discos da história do rock. Bob Dylan – citado no verso “it’s all over now, baby blue”, na deliciosa When We Was Fab – seguramente concorda. John Lennon – homenageado na mesma música com citações de seu I Am the Walrus – seguramente concordaria.

3 comentários:
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Outra maravulha.Desta vez escrita por quem entende e teve o cuidado e o respeito de ouvir (certamente mais de uma vez) o album,analisar os propósitos do artista e só então escrever sobre.Eu me apaixonei de cara por este album.Mas aljuém poderia explicar o que significa CLOUD NINE. ? Ouvi essa frase até em música de Lennon (Number 9 Dream).
Acho que eu posso, amigo João Carlos. "Cloud nine", no tempo dos Beatles, era uma gíria que representava o estado maior de êxtase quando fumavam maconha: "Vivíamos em Cloud 9", diria Harrison. Lennon usou várias vezes essa expessão, que representa quase o "nirvana" ou estado-alfa que se encontravam quando estavam sob o efeito da erva. Encaixou-se de forma perfeita para título do álbum. "Esse disco" foi especial e matador! E trouxe para as paradas o megasucesso (até no Brasil!) "I Got My Mind Set On You" que explodiu nos primeiros lugares rapidamente. Ótimo, George! Ficou demais e é com certeza, um dos meus preferidos. Achei a capa feia pra cacete! fizeram 300 fotos e escolheram uma que Harrison parece o próprio capeta! Na minha opinião!
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