Por Rafael Senra
Há uns anos atrás, a proliferação do ideário “politicamente correto” tirou o sono de muitos humoristas. Agora, em um mundo pós-Charlie Hebdo, uma questão fundamental retorna à pauta: quais seriam os limites do humor? Tudo isso inspirou o presente ensaio, em que tento abordar a vida e a carreira de John Lennon, figura que, apesar de não ser propriamente um humorista, tinha o escárnio e o riso como ingredientes frequentes em sua matéria prima artística.
Entre os quatro Beatles, John sempre pareceu ser o mais hábil em destilar nas suas canções e performances amostras de um humor eficaz, ainda que muito ácido em diversos momentos. Paul McCartney sempre apresentou canções marcadas por uma leveza e um otimismo próprios, mas por mais brilhante compositor que fosse (e é), nunca teve o humor como elemento tão forte. George Harrison, por sua vez, compôs canções cujas letras revelaram grandes pérolas de sarcasmo e ironia, como Awaiting On You All, Sue Me Sue You Blues, Horse to the Water, etc. – mas todas essas só surgiriam anos depois do fim dos Beatles, em sua carreira solo. E Ringo era uma figura que tinha boas doses de humor em suas performances, ainda que de maneira involuntária. O alvo preferencial de Lennon era quase sempre ele próprio, projetado em várias letras que retratavam um eu-lírico nada heroico e muito menos idealizado. Quando decidia tirar sarro de mais alguém além de si, o beatle escolhia corajosamente os alvos das zombarias. Há ótimas canções fazendo troça de instituições políticas, militares, religiosas, da Rainha da Inglaterra, do presidente americano Richard Nixon, ou de célebres colegas músicos, como Bob Dylan e até mesmo o parceiro Paul McCartney. Por outro lado, ele poupava e até mesmo fazia uma inflamada defesa dos direitos das minorias representativas, como mulheres, negros, homossexuais, etc.
Mas nem sempre foi assim. Na fase inicial dos Beatles, John não era tão politizado ou condescendente nas gracinhas. Em “Girl”, por exemplo, ele canta a letra principal, enquanto o coro das vozes de fundo cantarolam a palavra “tits” (seios) repetidas vezes. Uma sutileza, mas que carrega certa dose de machismo, e se soma a diversas histórias de bastidor que mostravam um jovem Lennon pouco atencioso com as necessidades das mulheres, tanto no aspecto pessoal (as mulheres com quem se relacionou, ou sua primeira esposa, Cynthia), quanto no coletivo (envolvendo direitos e demandas feministas). Ele só assumiria um posicionamento mais decididamente feminista depois de conhecer sua segunda esposa, Yoko Ono. E se isso parece ofensivo, é importante lembrar que John executou episódios de humor ainda mais constrangedores e tacanhos. Nos primeiros shows da banda, um de seus recursos de palco preferidos era imitar deficientes físicos e pessoas com problemas mentais. Como revelado pelos outros três Beatles e por imagens antigas no documentário Anthology, John se contorcia em alguns momentos mais animados dos shows, entortava sua boca, mãos e pernas, arrancando risos dos seus colegas de banda e de parte da plateia, sem se importar se seria ofensivo para qualquer um dos presentes. Gracinhas como essas podem ser tomadas como amostras de um humor ingênuo, o que, por outro lado, não as tornam inofensivas.
Apesar de alguns exemplos questionáveis, ao longo do tempo John sofisticaria seu estilo de humor, a começar por sua presença de palco. Em novembro de 1963, enquanto os Beatles tocavam em um show beneficente chamado Royal Variety Performance – cujos convidados de honra envolviam importantes figuras como a rainha Elizabeth I, a princesa, dentre outras celebridades –, Lennon diz para a plateia: “Para nosso último número, eu queria pedir a ajuda de vocês. As pessoas nos assentos baratos podem bater palmas. O resto de vocês pode sacudir as jóias”. Fazer piadas de figuras e instituições ligadas a pessoas poderosas foi algo muito bem explorado por John em diversas ocasiões, como nas canções Cry Baby Cry (sobre a Rainha) ou em Sexy Sadie (sobre o líder religioso Maharishi Mahesh Yogi). E quando estoura a Guerra do Vietnã, John protagoniza outro bem-humorado episódio envolvendo a realeza. Em 1969, ele resolve devolver para a Rainha a MBE (medalha que o condecorava como Membro da Ordem do Império Britânico), e vai até o Palácio de Buckingham pessoalmente para fazê-lo, entregando também a seguinte carta: “Sua majestade, estou devolvendo minha MBE em protesto contra o envolvimento da Grã-Bretanha no lance Nigéria-Biafra, contra nosso apoio à guerra do Vietnã e contra a queda nas paradas de ‘Cold Turkey’. Com amor, John Lennon”.
Ainda em 69, depois de ser proclamado personalidade do ano pela revista Rolling Stone, alguns críticos resolveram fazer uma pilhéria com a postura de Lennon e Yoko a favor da paz, elegendo-o como “palhaço do ano”. E eis que ele responde no ato: “Parte da minha política e da Yoko é não sermos levados à sério. Somos humoristas. Todas as pessoas sérias, como Kennedy, Luther King e Gandhi, foram assassinados. Queremos ser os palhaços do mundo. Fico orgulhoso em ser ‘O Palhaço do Ano’ num mundo em que gente séria está se matando e destruindo em guerras como a do Vietnã”.
Desde o início dos Beatles, um dos mais interessantes recursos de humor utilizados por Lennon foi o de fazer trocadilhos com palavras e expressões populares. Isso pode ser notado em diversas de suas músicas, sobretudo na fase mais criativa e psicodélica dos Beatles, como Being for the Benefit of Mr. Kite, I Am the Walrus, Glass Onion, etc. Uma das suas principais inspirações para tanto foi o escritor Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas e Alice no País dos Espelhos. Com Carroll, um hábil escritor na arte dos trocadilhos e jogos de palavras, John aprimorou sua veia lírica também nesta direção. Ao se aventurar na literatura em seus livros In His Own Write e A Spaniard in the Works, seus textos revelaram grande familiaridade em explorar as possibilidades sintáticas e semânticas das palavras (leia aqui um dos contos presentes no primeiro livro de John, traduzido para o português por Braulio Tavares).
As habilidades “trocadilhescas” de Lennon podem ser detectadas já na grande ideia por trás do nome da banda – um trocadilho em que a palavra besouros (“beetles”) aparecia grafada com “a”, aludindo também à palavra “beat” (“ritmo”, ou dialogando também com o movimento beat, etc.). Apesar das referências do nome “Beatles” serem razoavelmente evidentes, as justificativas que John oferecia para criá-lo eram igualmente hilárias: em algumas entrevistas, ele teria dito que sonhou com um homem misterioso, carregando uma torta flamejante, e que lhe dizia em uma voz cavernosa “vocês serão ‘Beatles’ com ‘a’”. Até hoje, um mistério ronda esta versão. É possível ler a declaração da torta flamejante como uma zombaria do discurso messiânico familiar a tantos políticos ou religiosos. Contudo, muita gente, como Yoko Ono, defende que essa é a verdadeira história por trás do nome da banda. Seria um sonho místico e premonitório, ou foi o mundo que não entendeu a piada?
Quando pensamos nas implicações éticas do humor, o trocadilho emerge como um recurso muito interessante. Diferente da visão de que o melhor humor sempre deve ser ofensivo, os trocadilhos não envolvem a depreciação de pessoa alguma. De fato, essa ideia de um humor ofensivo surge da noção de que o humor é definido essencialmente como sendo trágico, e que sua eficácia é proporcional ao nível de calamidade sofrido por alguém. Mas há uma outra definição, que toma o humor como sendo, basicamente, uma ligação inesperada entre fatos diferentes – tal qual um elemento surpresa que surge dos conteúdos e dos significados. Penso que os trocadilhos parecem demonstrar que, em se tratando de humor, o caráter inesperado parece prevalecer em relação ao trágico.
Sobre negros, mulheres e gays, que costumam ser alvos de humoristas apelativos e menos talentosos, Lennon até mesmo fez questão de interceder publicamente em relação a esses segmentos. Já no início dos Beatles, John defendeu o empresário da banda Brian Epstein, um homossexual atormentado que, a despeito de seu talento como administrador, acabaria morrendo por overdose de remédios para insônia. Logo depois da morte de Epstein, Lennon assume seu relacionamento com Yoko Ono, possivelmente a principal responsável por amplificar e contextualizar a visão humanística e pacifista que ele já possuía de forma latente e intuitiva. A postura politizada que o casal assume envolve também uma cumplicidade com demandas de setores menos privilegiados da sociedade. A partir daí, se intensificam as canções e declarações de John e Yoko defendendo os direitos das mulheres, negros, imigrantes, etc. Em seu controverso disco Some Time in New York City, de 1972, Lennon compõe músicas que são praticamente declarações suas a respeito de alguns desses temas, como Woman is the Nigger of the World – cujo título já, de cara, trata simultaneamente da questão das mulheres e dos negros. Duas pautas que surgem novamente em canções como “Angela”, sobre Angela Davis, uma militante comunista que fazia parte do partido dos Panteras Negras. Mas o alvo preferencial do humor “lennoniano” ao longo de toda sua carreira foi… ele mesmo. John soube, como ninguém, fazer chacota de si, e expor aspectos pouco glamorosos de sua própria personalidade. Em algumas canções, como Help ou Strawberry Fields Forever, sua abordagem intimista surgia mais tomada por angústia e nostalgia. Contudo, há diversas outras canções em que o beatle parecia rir de seus próprios podres, como sua constante preguiça (I’m Only Sleeping ou I’m so Tired), ou o fato de se sentir um perdedor (I’m a Loser), e até mesmo a perseguição pública que sofria por namorar uma estrangeira (The Ballad of John and Yoko, ou Everybody’s Got Something to Hide Except Me and My Monkey).
Ao longo de sua vida e carreira, John Lennon sempre usou o humor para desmistificar quaisquer instituições e figuras cujo poder pudesse ser opressivo em alguma medida. E, com toda a parcimônia que pôde, utilizou essa desmistificação sobretudo em relação a si mesmo ou aos Beatles. Em boa parte das entrevistas que deu, ele tentou massacrar diversas tentativas de transformar-se em lenda. Jornalistas e fãs tentavam, a todo momento, tê-lo como um sujeito especial, quase que um totem, e ele viu no humor uma das maneiras pelas quais podia humanizar a si mesmo, destruindo o pedestal onde tantos insistiam em colocá-lo. Infelizmente, o brilhantismo da mensagem artística de John não chegou até um sujeito em especial, que, incapaz de compreender seu senso de humor, envolveu-se em uma sacralização fanática de Lennon, algo que custaria a vida do artista. Afinal, assim como existem no mundo os maus humoristas, também há os maus entendedores – mesmo quando se trata de algo tão direto e universal quanto as ideias que o ex-beatle cantou e praticou por toda a sua existência.
5 comentários:
Grande Edu !
Há quanto tempo não posto aqui ...
John era realmente um gênio e como todos os gênios, tinha um humor refinado e irônico !
Saudade desse ídolo, que cada vez faz mais falta nesse nosso mundo de hoje.
Abração,
Excelente artigo!! Taí, inda não tinha visto ninguém fazer essa abordagem.
Um humor mordaz !!!
Para o bem e para o mal !!
Em tempos de internet, John causaria uma polêmica por semana.
É, realmente de fato nunca visto uma matéria sobre esse perfil de jhon lennon. Interessante e curioso.
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