sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

ARQUIVOS DO BAÚ DO EDU - Nº 08

O descontraído e cativante texto que vocês conferem a seguir, foi publicado na revista “SELEÇÕES” (do Reader’s Digest) em fevereiro de 1966. O show dos Beatles que o texto se refere, aconteceu em 2 de setembro de 1964 no “Convention Hall”, na Philadelphia. Elinor Wikler - a autora nasceu em 4 de julho de 1915 e faleceu em 10 de outubro de 1982. Espero que gostem! Abração em todos!

TODO MUNDO TEM O SEU BEATLE
Por Elinor Wikler

No andar de cima a televisão rugia, e as três adolescentes diante do espelho, Joanie e suas duas melhores amigas, Judy e Melanie, pareciam personagens de uma orgia romana. Judy rolava na cama, gemendo; Melanie estava no chão mordendo um travesseiro; e a minha Joanie, com os nós dos dedos enfiados na boca, parecia Hamlet vendo o fantasma do pai. No vídeo o animador pediu silêncio, e a cameracomeçou a passar pela platéia, pelos rostos de garotas contorcidos em um misto de agonia, êxtase e desespero. Eu ainda tinha subido para dizer-lhes que diminuíssem o volume, mas, parada ali, senti que aqueles ritos, o que quer que fosse, eram particulares e eu não deveria intrometer-me. No dia seguinte, quabdo enxugava os pratos, Joanie virou-se para mim e perguntou:
- Mamãe, não acha que eles são formidáveis?
- Eles quem? – perguntei distraidamente.
- Você sabe muito bem... eles! Respondeu ela da mesma maneira como quando, havia pouco tempo, era incapaz de pronunciar o nome de Papai Noel.
- Você está falando nos Beatles?
- Isso mesmo – respondeu minha filha, sem levantar os olhos.
- Eu compreendo a maioria das coisas – comecei – mas por que os Beatles?
- De que eram feitos os seus sonhos, mamãe? Perguntou Joanie.
Clark Gable subindo aquela escada carregando Scarlett nos braços, pensei. Os olhos de Charles Boyer, a voz... a lentidão com que Humphrey Bogart inalava a fumaça do seu cigarro.
- Eles não estão mais presentes – disse eu, sentindo um certo vazio.
Ela estava mexendo no rádio.
_ Estão sim – disse – nos velhos filmes da TV. Com o cabelo emplastrado, namorando aquelas pequenas com vestidos se miçangas e sem sobrancelhas. Isso hoje é velharia, mamãe.
- Ele me tocou de leve no braço. – Desculpe.
Joanie ligou o rádio. Meus velhos anseios secretos estavam indo todos por água abaixo. Os dela enchiam o ambiente: “I wanna hold your hand, I wanna hold your hand…”
Ela sorriu. Isso não mexe com você, mamãe? Esse é o George.
O jeito dela era bem igual ao meu, nas maravilhosas tardes de sábado, nos cinemas de veludo e ouro de minha adolescência. Que diferença fazia, pensei, se aqueles quatro bonecos de engonço tinham cabelo demais? Compreendi que meu “por que?” a Joanie não encontraria resposta na mentalidade, mas nos tempos – e no coração de uma jovem.
A medida que se passavam os dias e os meses, e as revistas de fãs e discos e retratos dos Beatles se acumulavam, comecei a compreender o que havia naquilo de divertido, a emoção, a aventura...
A aventura começou num dia de março, quando anunciaram que numa certa tarde de quinta-feira, em maio, a partir das 4:30h, seriam postas à venda as entradas para o espetáculo que em setembro Os Beatles iriam dar na cidade.
Lá pelas nove e meia daquela manhã de maio, Joanie e Melanie partiram rumo ao auditório, munidas de almoço em sacos de papel, dois velhos banquinhos dobráveis que tínhamos encontrado no sótão, e cada uma com um rádio transistor (para ouvir os Beatles enquanto esperavam).
O dia inteiro o rádio noticiou que uma multidão crescente se aglomerava diante do auditório e que a polícia estava preparada para agir em caso de tumulto. Finalmente, às cinco horas, a campainha do telefone tocou.
- Joanie! Onde você está?
- Na estação, mamãe. Será que podia vir apanhar-nos? E imagine só! Conseguimos as entradas! Estavam anquilosadas e bataidas, mas satisfeitas. No carro, a história saiu aos arrancos. A gerência, temendo uma arruaça, abrira a bilheteria uma hora mais cedo e vendera tudo em duas horas. Todo mundo estava lá. Todo mundo mesmo! Alguns tinham passado a noite inteira na escada. Cantavam juntos “We Love You Beatles”.
Assim, todo mundo tinha alguma coisa em comum – Ringo e George e Paul e John. Meninas como Joanie e Melanie, que não eram líderes no ginásio, tinham-se integrado na multidão – o grande oceano do mundo. E se conseguissem não se fufocar de emoção até setembro, então, então, estariam respirando o mesmo ar, o mesmíssimo ar que George e Paul e Ringo e John respiravam!
As entradas foram guardadas dentro de um envelope, dentro de outro envelope, na caixa de jóias de Joanie, e a chave posta dentro de um envelope na minha caixa de jóis, e a chave dessa caixa na gaveta trancada da escrivaninha do meu marido. No calendário da cozinha, o dia 2 de setembro foi marcado com estrelinhas. Cada qual tinha seu Beatle. George, sossegado, meditativo era de Joanie. Melanie, intrensa, extrovertida, escolhera Ringo, o mais divertido. E Judy facara com Paul, bonito e bondoso.
Elas tinha adotado uma porção de coloquialismos ingleses, e acompanharam “O Filme” (estrelado pelos Beatles) dos cinemas do centro da cidade até os bairros mais afastados, e tinham conhecido uma garota que tinha uma prima que tinha uma amiga que uma vez tocara em Ringo. E como Ringo pertencia a Melanie, isso colocou-a em uma atmosfera de transe e passou a ser um dos detalhes de um romance em que Ringo nota no teatro uma loura de preto (Melanie, oxigenada) e manda o porteiro entregar-lhe um bilhete: “Meu amor – espere por mim depois.”
Em fins de agosto houve intermináveis discussões a respeito do que vestir, quantos dias antes do espetáculo elas deveriam fazer um xampu nos cabelos, se deviam usar brincos, e nesse caso, se deviam ser compridos.
Em 2 de setembro, levei as três à estação ferroviária, caladas e nervosas. Judy, longe das vistas, passou sombra nos olhos (fingi não notar), e Melanie, que trouxera escondido na bolsa um par de brincos dourados de argola, a todo instante se olhava no espelhinho do carro para verificar se os brincos continuavam pendurados nas suas orelhas. Joanie dera preferência aos tons desmaiados; usava sandálias e pintara de prateado as unhas dos pés. Elas nada diziam a não ser um ocasional: “Oh, Brenda!”, “Oh, Tarlenton!”, “Oh, Mavis!” – esses eram nomes britânicos que elas tinham secretamente adotado. A todo instante verificavam se as entradas estavam na bolsa.
O espetáculo não iria começar antes das 8:30h, mas elas tomaram o trem das três para a cidade. Queriam “ficar um pouco por ali conversando com a turma” esperando a chegada dos Beatles. Ficou combinado que mais tarde me telefonariam caso quisessem que eu fosse apanha-las na estação.
Em casa, a noite pareceu interminável. Fiquei mudando de canal na TV – notícias, boletins meteorológicos, esportes. Passei para um filme de James Stewart e me encolhi no sofá, não muito fascinada pelo antigo glamour. Algo me parecia diferente – ele parecia um velho com aquele cabelo brilhantinado!
Fialmente, a porta bateu e Joanie entrou adejando pelo sala. Atirou-se no sofá e estendeu para o pai o canhoto verde da entrada.
- Guarde isso para mim, papai, na gaveta fechada.
Depois virou-se de bruços, enterrou o rosto nas almofadas e começou a gemer. Meu marido ajoelhou-se junto dela, afagando-le os cabelos.
- Joanie, você está sentindo alguma coisa?
- Sinto-me tão... feliz! É só isso, papai. Eles estavam lá! Na mesma sala. Com a gente! Se eu morresse agora, se eu fosse fulminada neste momento, não me importaria. O dia 2 de setembro veio...- sua voz era solene – e passou!
- Passou mesmo! – disse Fred enxugando-lhe o rosto com seu lenço.
- Vamos, diabinha, agora está na hora da cama.
- Foi com um sonho, como um conto de fadas – disse ela, sentada na cama, de pijama, tomando o seu leite.
- Tão especial... tão alucinante... como queríamos que fosse. Luzes acendendo e apagando. A platéia às escuras. O pano abrindo. Todo mundo em pé em cima das cadeiras e gritando. E todos tão juntos. Parecia... parecia fogos de artifício! E então, mamãe, eles apareceram, de verdade, em carne e osso. E então... – ela abriu a mão que segurava um pedaço de papel de alumínio. – Sabe o que é isto? Abanei a cabeça.
- O bolo! – disse ela com os olhos faiscantes – o bolo que eles comeram na entrevista coletiva estava embrulhado nisto! Foi um policial quem nos deu. Tirou o papel do lixo. Não acha que ele foi um anjo, mamãe?
- Foi sim, meu bem – respondi Agora durma direito. Ela dormiu até a hora do almoço.
- Como se sente agora, Joanie? Perguntei enquanto almoçávamos.
Ela suspirou, espreguiçou-se. E olhou através das cortinas a tarde luminosa.
- Realizada! Respondeu, dando uma ênfase especial à palavra.
- Se estou com pena de ter tudo acabado? – repetiu – Acabado? Nada acaba. Sempre há uma próxima vez.
A próxima vez, pensei eu. São tantas as próximas vezes na idade dela! O que lhe trarão essas próximas vezes, aos 15 anos, aos 16?
- Nada acaba nunca!
Lembro-me de também ter acreditado nisso. Acabar? Os Beatles? Provavelmente logo, para Joanie. E mais tarde voltaria à superfície, um dia na cozinha conversando com a própria filha.
Mas se algum dia, no vasto e crescente oceano do mundo De Joanie, eu encontrasse um ingês cabeludo chamado George, ou Ringo, ou Paul, ou John, eu lhe agradeceria por dar a minha filha o sentimento reconfortante de fazer parte da multidão, e por suavizar, com a cadência de sua música, o sofrimento, o medo, a solidão, o encantamento de estar crescendo. Obrigado, Beatles!

2 comentários:

João Carlos disse...

Muito bom Edu.E retifica o que George falou: 'naquele tempo éramos os Spice Boys".

João Carlos disse...

Perdão.Quis dizer "ratifica".