O livro "PAZ, AMOR E SGT.PEPPER" de George Martin, lançado pela editora Relume Dumará em 1995, é bastante abrangente e esclarecedor em todos os aspectos que envolveram a gravação do incomparável álbum clássico dos Beatles. Hoje, este livro é raridade. A edição brasileira foi totalmente organizada, preparada e traduzida pelo grande pesquisador Marcelo Fróes. Nele, George Martin dedica um capítulo especial a cada faixa do álbum. Explica tim-tim por tim-tim como foi todo o processo desde a composição até a gravação de cada uma das canções. O texto que a gente confere a seguir, é sobre "She's Leaving Home". Vale à pena dar uma lida (apesar do tamanho). Abração a todos e boa leitura!
17 DE MARÇO DE 1967 - "DIVERSÃO É A ÚNICA COISA QUE O DINHEIRO NÃO CONSEGUE COMPRAR..."
She's Leaving Home é mais um exemplo de Paul trabalhando em casa e saindo com outra bela balada que conta sua própria historinha. (Como Getting Better, Paul diz que a música lhe chegou pela primeira vez enquanto andava com Martha no Primrose Hill.) John acrescentou algumas frases ao refrão — contra o sustenido de Paul... "She is leaving...", cantava as belas frases de contraponto: "We gave her most of our lives." (Nós lhe demos a maior parte de nossas vidas.) Mas não deveria haver nenhum outro Beatle nela. Paul queria que o fundo fosse apenas de cordas.Naquela época, Paul já desenvolvera muito o gosto pelas orquestras e pelas coisas meio clássicas, razão provável para ele mesmo não ter querido tocar um instrumento nessa faixa. She's Leaving Home não é realmente uma canção dos Beatles, falando em sentido estrito. É puro McCartney, do começo ao fim, com uma pequena ajuda do amigo John. E além das duas vozes, tudo o que ouvimos é uma harpa e um noneto de cordas (quatro violinos, duas violas, dois celos e um contrabaixo).
Como Paul queria ter uma seção de cordas na música, me telefonou pedindo para que eu fosse encontrá-lo para anotar o que ele já tinha e escrever o arranjo.
Acontece que não pude ir porque estava comprometido com uma gravação de Cilla Black. Muito embora os Beatles fossem prioridade em minha vida, ainda tinha uns outros artistas para gravar. Esses artistas compreendiam muito bem que os Beatles tinham prioridade, mas havia momentos, e esse foi um deles, em que simplesmente não podia largar tudo e sair correndo.
Fiquei muito surpreso e magoado com Paul, que pegou o telefone e procurou um cara chamado Mike Leander, porque eu disse que não poderia ir naquele momento. Mike era um bom arranjador e Paul o contratou para fazer o arranjo.
Até então fizera tudo o que Paul e os Beatles queriam em termos de orquestração. Não consegui entender o porquê de tanta urgência, assim de repente. Obviamente não lhe passou pela cabeça que ficaria chatea¬do. Anos depois, na verdade, disse: "Eu não consegui compreender o porquê daquilo ter sido tão significativo para você. Estava na minha cabeça e eu queria tirar dali, botar pra fora. Só isso".
Foi Paul sendo simplesmente Paul.
As pessoas têm sido muito gentis comigo, dizendo que as orquestra¬ções que fiz para as músicas dos Beatles sempre pareceram funcionar, enquanto as que não eram minhas ficaram piores. No caso, Mike Leander fez um belo trabalho no arranjo de She's Leaving Home; não modifiquei quase nada. Entretanto, 20 e poucos anos me fazem desejar ter sido mais duro com aquele arranjo. Mesmo correndo o risco de ser acusado de jogar farpas, ao ouvi-lo hoje em dia acho que a harpa ficou um pouco forte e o som das cordas parece meio exuberante. Talvez pudesse ter ficado um pouco mais austera.
Meu princípio, quando escrevo um acompanhamento de orquestra, tem sido sempre deixar de fora qualquer coisa desnecessária. É sempre fácil abusar das coisas quando se está orquestrando. A isso sempre associo a síndrome do "Será que vai funcionar? Não tenho certeza, então vamos botar pra ver..." Em outras palavras, às vezes os orquestradores chegam a um resultado final pesado porque não têm a coragem de seguir sua primeira convicção — a de que algo mais simples funcionará.
Deve-se ter muito cuidado com a nota que se escreve para um determinado instrumento da orquestra. O que funciona no celo pode não funcionar de jeito nenhum no trombone. Deve-se também ter o cuidado de não escrever notas demais (como Mozart foi uma vez acusado de fazer) ou de usar excessivos instrumentos. Se você conseguir escrever bem para um quarteto de cordas — foi o que fizemos para Yesterday —, poderá fazê-lo para uma orquestra de cordas. Muitas pessoas tendem a pensar com os dedos num teclado de piano quando estão escrevendo para orquestra, e tentam escrever daquela forma para as cordas. Entretanto, você tem dez dedos: se jogar dez notas numa orquestra de cordas, soará extremamente cheio e o resultado correrá o risco de parecer sujo. Se jogar apenas quatro notas numa orquestra de cordas, é provável que soe muito melhor. Além do mais, uma única nota soando sobre uma orquestra inteira pode dar um tremendo efeito. Sei disso porque Paul veio até mim um dia:
Estive ouvindo Beethoven, George.
Que bom, Paul — respondi. Ignorando minha secura, ele prosseguiu:
Estudei bem. Sabe o começo da Quinta Sinfonia? É simplesmente uníssona. Não há acordes. Todo mundo toca as mesmas notas! Você está certo, Paul — respondi.
Mas isso é fantástico! — vibrou. — É um ótimo som!
Claro que é — repliquei. — A orquestra inteira fala em uma só voz — isso é genial: BOM BOM BOM BO-OM! A maioria das pessoas provavelmente nem sequer imagina que todos estão tocando notas únicas de uma só vez.
Não estávamos fazendo nada parecido com a Quinta. Mas de qual¬quer forma, contratei uma pequena orquestra — quatro violinos, duas violas, dois celos, um contrabaixo e uma harpa — para a sexta-feira 17 de março. A harpista foi Sheila Bromberg — a primeira mulher a tocar num disco dos Beatles. Trabalhamos por toda a noite, gravando o grupo ao vivo e direto em oito takes, tentando fazer a coisa do jeito que Paul queria. Preenchi nossos primeiros quatro canais da seguinte forma:
Canal 1: harpa
Canal 2: contrabaixo
Canal 3: quatro violinos
Canal 4: duas violas e dois celos
Enquanto trabalhávamos em posições invertidas — Paul na sala de controle e eu no estúdio conduzindo a orquestra —, observei que nada de errado acontecera no primeiro take e que o take 6 também já estava muito bom. No final, escolhemos o take 1 como o melhor, de maneira que todo o trabalho posterior foi à jato. Preparando-me para os vocais, fiz uma transferência de-quatro-para-quatro canais no dia seguinte, mixando os canais originais em (dois canais) estereofônicos da nova fita.
Na segunda-feira começamos a fazer os vocais. Agora que já havíamos gravado nossa base orquestral em estéreo, só tínhamos dois canais para brincar. Eu quis dobrar as vozes e Paul concordou mas, como preferi não partir para uma terceira fita, ele e John tiveram que gravar suas vozes juntas, compartilhando o mesmo canal. Para obter o efeito de resposta que se percebe no refrão, quando Paul canta "She i leaving..." e John leva "We gave her most of our lives..." em contraponto, os dois tiveram de cantar suas partes sem erros e ao mesmo tempo.
Eu queria uma perspectiva para cada voz, e por isso diferentes ecos foram adicionados a cada um na gravação. E é claro que ainda quis fazer a minha duplicação de vozes! Assim que conseguimos uma boa perfor¬mance no canal 3, eles tiveram que cantar de novo e da mesmíssima forma no canal 4. Muito difícil, mas os Beatles àquela época já eram mestres em seu ofício. Já tinham muita prática, reunida com o correr dos anos. E ainda passamos a maior parte da noite naquilo!
She's Leaving Home é uma das melhores músicas de Paul. O contraponto das vozes é econômico, claro e mágico. É uma canção com uma bela narrativa, do tipo que começara a fazer em EleanorRigby. Achei que a frase "Oh, look at all the lonely people" funcionaria melhor se fosse cantada contra o final da melodia principal. Um contraponto. Então sugeri que fizéssemos uma adição. Eles ficaram abismados com o resultado:
— Como você soube que funcionaria? — perguntou Paul.
Eles mesmos tinham uma percepção instintiva para esse tipo de composição, sem precisar de nenhum estímulo meu para criar as duas frases opostas em Help!, por exemplo, que nascera no início daquele ano. Mas a experiência de Eleanor Rigby fez sem dúvida com que Paul observasse mais atentamente os lugares em que poderia usar aquele recurso. She 's Leaving Home é uma das músicas em que melhor usa o contraponto com todo o seu melhor efeito.
Em 1967 pensava que a música clássica estava morrendo, ou já morrera. A música clássica por sua própria natureza já é uma música morta — foi escrita por gente que já morreu há 50 anos ou mais. Com relação à música clássica "contemporânea", na época de Pepper realmente não existia muita. Havia muito poucos compositores clássicos vivos, e tendiam a ser mais marginalizados do que hoje e certamente eram mais pobres. Na verdade, um mundo muito fechado e muito pequeno. As pessoas não ouviam música clássica de vanguarda em número significativo, e portanto havia muito pouco dinheiro para isso. Hoje em dia a aceitamos mais; mais gente escreve a respeito dela e a ouve um pouco mais.
Em 1994 havia cerca de 1.500 compositores na Grã-Bretanha que não faziam nada a não ser escrever música clássica o dia inteiro. Até hoje, contudo, a maioria corre o risco de morrer de fome. E numa população de mais de 50 milhões, 1.500 pessoas ainda não é muito, convenhamos. Não c o que você poderia chamar de uma atividade difundida, como a pescaria por exemplo.
As conversas sobre música clássica tendem a frases como: "Você já ouviu Bruckner interpretado por Karajan, tão diferente de Klemperer? É muito interessante..." A interpretação até pode ser interessante, mas ainda é Bruckner. É tudo o que podem fazer — remexer no que já está lá.
A música pop para mim estava viva; expressava o sentido da vida, refletindo-a e comentando-a, sempre da melhor maneira, muitas vezes inconscientemente. Pepper certamente faz isso.
Ao contrário dos que me cercavam, era pretensioso o suficiente para ver Sgt. Pepper como arte contemporânea, como arte musical contempo¬rânea. O disco tinha todos os tipos de influência, desde o jazz, a música folk, o rock'n'roll, o rhythm & blues — mas também tinha uma tremen¬da veia clássica. Eu via o álbum como o primeiro exemplo de um novo tipo de música, uma mistura de clássico e rock que derrubara as barreiras que existiam entre os dois estilos. Sempre achei ridículo as pessoas se recusarem a ouvir rock porque era considerado "sem valor", de alguma forma não tão "bom" como o clássico.
Quando levamos em conta as ótimas músicas dos Beatles, sempre existe uma armadilha em que podemos cair: a hipérbole. É perigoso compará-los com Schubert, porque a comparação não é realmente entre os estilos. Como você poderia comparar Cole Porter com Mahler, diga¬mos, ou Stephen Soundheim com Chopin? Da mesma forma, She's Leaving Home chega perto do mais alto nível de compositores. O pequeno drama que se desenvolve, a tragédia cotidiana do folclore comum que Paul captura em suas palavras e em sua música dizem algo verdadeiro a respeito de um canto da vida suburbana. O choro dos pais em "What did we do that was wrong?" ("fizemos o melhor por ela, por que ela nos deixou e se foi?") é tocante.
O refrão é construído quase como uma ópera. Paul canta a parte mais alta e John a mais baixa, fazendo a voz dos pais de uma forma bonita.
She's Leaving Home só poderia ter sido escrita por Paul, já naquela época um compositor-mestre. O público da Grã-Bretanha costuma vê-lo agora como o docinho do grupo, com todas aquelas músicas de amor e cheias de ternura creditadas a ele. Na verdade era tão roqueiro quanto John, e este conseguia ser tão meloso quanto Paul em músicas de amor. Helter Skelter, um rock pulsante de Paul que foi o mais próximo que os Beatles chegaram do heavy metal, é um dos muitos exemplos que qualquer um poderia tirar do trabalho deles para desbaratar este clichê.
John cantou algumas baladas românticas, como Julia e Imagine. Mesmo assim, sempre foi rotulado como o roqueiro do grupo. Paul tinha um talento para a melodia, que parecia brotar sem esforço. De vez em quando me emocionava, ouvindo uma bela melodia com harmonias interessantes e me perguntava de onde elas haviam saído. Era estranho: Paul também nunca soube.
A música de John nunca foi chata, mas em sua maior parte era monótona, em sentido literal: gostava de espalhar letras estranhas e maravilhosas em uma ou duas notas: "Living is easy with eyes closed..."; "Imagine there's no heaven..."; "It's been a hard day's night..."; "I am he as you are he, as you are me and we are all together..." Todas são composições monótonas, ou quase-monótonas.
Sua habilidade se revelava nas alterações que obtinha nas harmo¬nias, por baixo da monotonia. Elas transformavam completamente o que poderia ter ficado chato em uma música magnífica. Encaixavam tão bem quanto os pés em chinelos confortáveis. O resultado desse processo era sempre intrigante, embora, como John uma vez comentou: — Você não ouvirá I Am the Walrus sendo assobiada pelo garçom de um restau¬rante espanhol!
A arte casual era muito atraente para todos os Beatles. A idéia de que um filme mudo escolhido ao acaso poderia se encaixar num trecho de música igualmente selecionado ao acaso era um grande barato. Eles adoravam brincar com isso. Era a linha do "Ei, cara, olha só pr'aquilo", a arte da consciência "liberada" psicodelicamente ou por qualquer outro meio que existisse na época. A partir daí, às vezes costumavam ficar, horas tirando um som no estúdio, achando que a gente teria que gravar tudo, numa forma de reconhecimento ao momento de grande geniali-dade. O único problema é que ele nunca pintava.
Esse tipo de oficina livre aconteceu muitas vezes depois de Pepper, em Magicai Mystery Tour. Era um lado dos Beatles que descobri ser bastante chato. Eu costumava dizer: — Se vocês querem tocar ao acaso, vamos nos organizar —, o que definitivamente não era o que queriam quando entravam naquela. Mas quase acabavam tolerando aquilo, em minha homenagem.
Quando John trouxe "I Am the Walrus", ainda em 1967, disse: — Entendo aonde você está tentando chegar: é muito estranho mas é ótimo. Vamos nos organizar —. John topou. Escrevi um arranjo para celos e todos os trechos dos cantores, diretamente nos "ha ha nas" e nos "ri ri ris" que John sugerira, cantados pelos cantores de Mike Sammes Singers. Eu gostava da estranheza, na verdade adorava a anarquia dos pensamentos de John — quando conseguia ajeitá-los e canalizá-los. E o acaso às vezes funcionava às maravilhas. John pensou em adicionar efeitos inteiramente ao acaso sobre nossa mixagem de I Am the Walrus. Ele se inspirou em John Cage, que muito antes já usara uma transmissão de rádio para criar um "happening". Então trouxemos um rádio, conectamos à mesa e entregamos os controles a John. De imediato, descobriu que desejava uma peça de Shakespeare, Rei Lear, que estava sendo transmitida ao vivo. Já era tão tarde que provavelmente fomos as únicas pessoas a ouvir o drama: mas entrou na mixagem e lá ficou para sempre.
Eu pensava que John tivesse gostado de todas as técnicas de produção de que havíamos sido pioneiros em Pepper, mas logo que ficava pronto ele já se rebelava contra. Ele queria voltar ao que chamava de "honestidade" na gravação — em outras palavras, queria que ficassem tão próximas das apresentações ao vivo quanto possível. Eu achava que estávamos fazendo pequenos filmes sonoros, e não peças para o palco. Se um pequeno artifício dava melhor resultado, por que não usá-lo? Além do mais, havíamos sido honestos nos truques que usáramos.
Era como se lhes dissesse: "Pensem sinfonicamente; pensem nos temas que vocês podem trazer em tons diferentes; pensem no contra¬ponto; pensem em colocar uma música contra outra, de forma que cada uma dê algo mais à outra — existe todo tipo de coisa que vocês podem fazer." Mas John não queria nada daquilo.— Isso não é rock'n'roll para mim, George —, ele disse. — Rock mesmo é curtir um bom som.
Em 1967 pensava que a música clássica estava morrendo, ou já morrera. A música clássica por sua própria natureza já é uma música morta — foi escrita por gente que já morreu há 50 anos ou mais. Com relação à música clássica "contemporânea", na época de Pepper realmente não existia muita. Havia muito poucos compositores clássicos vivos, e tendiam a ser mais marginalizados do que hoje e certamente eram mais pobres. Na verdade, um mundo muito fechado e muito pequeno. As pessoas não ouviam música clássica de vanguarda em número significativo, e portanto havia muito pouco dinheiro para isso. Hoje em dia a aceitamos mais; mais gente escreve a respeito dela e a ouve um pouco mais.
Em 1994 havia cerca de 1.500 compositores na Grã-Bretanha que não faziam nada a não ser escrever música clássica o dia inteiro. Até hoje, contudo, a maioria corre o risco de morrer de fome. E numa população de mais de 50 milhões, 1.500 pessoas ainda não é muito, convenhamos. Não c o que você poderia chamar de uma atividade difundida, como a pescaria por exemplo.
As conversas sobre música clássica tendem a frases como: "Você já ouviu Bruckner interpretado por Karajan, tão diferente de Klemperer? É muito interessante..." A interpretação até pode ser interessante, mas ainda é Bruckner. É tudo o que podem fazer — remexer no que já está lá.
A música pop para mim estava viva; expressava o sentido da vida, refletindo-a e comentando-a, sempre da melhor maneira, muitas vezes inconscientemente. Pepper certamente faz isso.
Ao contrário dos que me cercavam, era pretensioso o suficiente para ver Sgt. Pepper como arte contemporânea, como arte musical contempo¬rânea. O disco tinha todos os tipos de influência, desde o jazz, a música folk, o rock'n'roll, o rhythm & blues — mas também tinha uma tremen¬da veia clássica. Eu via o álbum como o primeiro exemplo de um novo tipo de música, uma mistura de clássico e rock que derrubara as barreiras que existiam entre os dois estilos. Sempre achei ridículo as pessoas se recusarem a ouvir rock porque era considerado "sem valor", de alguma forma não tão "bom" como o clássico.
Quando levamos em conta as ótimas músicas dos Beatles, sempre existe uma armadilha em que podemos cair: a hipérbole. É perigoso compará-los com Schubert, porque a comparação não é realmente entre os estilos. Como você poderia comparar Cole Porter com Mahler, diga¬mos, ou Stephen Soundheim com Chopin? Da mesma forma, She's Leaving Home chega perto do mais alto nível de compositores. O pequeno drama que se desenvolve, a tragédia cotidiana do folclore comum que Paul captura em suas palavras e em sua música dizem algo verdadeiro a respeito de um canto da vida suburbana. O choro dos pais em "What did we do that was wrong?" ("fizemos o melhor por ela, por que ela nos deixou e se foi?") é tocante.
O refrão é construído quase como uma ópera. Paul canta a parte mais alta e John a mais baixa, fazendo a voz dos pais de uma forma bonita.
She's Leaving Home só poderia ter sido escrita por Paul, já naquela época um compositor-mestre. O público da Grã-Bretanha costuma vê-lo agora como o docinho do grupo, com todas aquelas músicas de amor e cheias de ternura creditadas a ele. Na verdade era tão roqueiro quanto John, e este conseguia ser tão meloso quanto Paul em músicas de amor. Helter Skelter, um rock pulsante de Paul que foi o mais próximo que os Beatles chegaram do heavy metal, é um dos muitos exemplos que qualquer um poderia tirar do trabalho deles para desbaratar este clichê.
John cantou algumas baladas românticas, como Julia e Imagine. Mesmo assim, sempre foi rotulado como o roqueiro do grupo. Paul tinha um talento para a melodia, que parecia brotar sem esforço. De vez em quando me emocionava, ouvindo uma bela melodia com harmonias interessantes e me perguntava de onde elas haviam saído. Era estranho: Paul também nunca soube.
A música de John nunca foi chata, mas em sua maior parte era monótona, em sentido literal: gostava de espalhar letras estranhas e maravilhosas em uma ou duas notas: "Living is easy with eyes closed..."; "Imagine there's no heaven..."; "It's been a hard day's night..."; "I am he as you are he, as you are me and we are all together..." Todas são composições monótonas, ou quase-monótonas.
Sua habilidade se revelava nas alterações que obtinha nas harmo¬nias, por baixo da monotonia. Elas transformavam completamente o que poderia ter ficado chato em uma música magnífica. Encaixavam tão bem quanto os pés em chinelos confortáveis. O resultado desse processo era sempre intrigante, embora, como John uma vez comentou: — Você não ouvirá I Am the Walrus sendo assobiada pelo garçom de um restau¬rante espanhol!
A arte casual era muito atraente para todos os Beatles. A idéia de que um filme mudo escolhido ao acaso poderia se encaixar num trecho de música igualmente selecionado ao acaso era um grande barato. Eles adoravam brincar com isso. Era a linha do "Ei, cara, olha só pr'aquilo", a arte da consciência "liberada" psicodelicamente ou por qualquer outro meio que existisse na época. A partir daí, às vezes costumavam ficar, horas tirando um som no estúdio, achando que a gente teria que gravar tudo, numa forma de reconhecimento ao momento de grande geniali-dade. O único problema é que ele nunca pintava.
Esse tipo de oficina livre aconteceu muitas vezes depois de Pepper, em Magicai Mystery Tour. Era um lado dos Beatles que descobri ser bastante chato. Eu costumava dizer: — Se vocês querem tocar ao acaso, vamos nos organizar —, o que definitivamente não era o que queriam quando entravam naquela. Mas quase acabavam tolerando aquilo, em minha homenagem.
Quando John trouxe "I Am the Walrus", ainda em 1967, disse: — Entendo aonde você está tentando chegar: é muito estranho mas é ótimo. Vamos nos organizar —. John topou. Escrevi um arranjo para celos e todos os trechos dos cantores, diretamente nos "ha ha nas" e nos "ri ri ris" que John sugerira, cantados pelos cantores de Mike Sammes Singers. Eu gostava da estranheza, na verdade adorava a anarquia dos pensamentos de John — quando conseguia ajeitá-los e canalizá-los. E o acaso às vezes funcionava às maravilhas. John pensou em adicionar efeitos inteiramente ao acaso sobre nossa mixagem de I Am the Walrus. Ele se inspirou em John Cage, que muito antes já usara uma transmissão de rádio para criar um "happening". Então trouxemos um rádio, conectamos à mesa e entregamos os controles a John. De imediato, descobriu que desejava uma peça de Shakespeare, Rei Lear, que estava sendo transmitida ao vivo. Já era tão tarde que provavelmente fomos as únicas pessoas a ouvir o drama: mas entrou na mixagem e lá ficou para sempre.
Eu pensava que John tivesse gostado de todas as técnicas de produção de que havíamos sido pioneiros em Pepper, mas logo que ficava pronto ele já se rebelava contra. Ele queria voltar ao que chamava de "honestidade" na gravação — em outras palavras, queria que ficassem tão próximas das apresentações ao vivo quanto possível. Eu achava que estávamos fazendo pequenos filmes sonoros, e não peças para o palco. Se um pequeno artifício dava melhor resultado, por que não usá-lo? Além do mais, havíamos sido honestos nos truques que usáramos.
Era como se lhes dissesse: "Pensem sinfonicamente; pensem nos temas que vocês podem trazer em tons diferentes; pensem no contra¬ponto; pensem em colocar uma música contra outra, de forma que cada uma dê algo mais à outra — existe todo tipo de coisa que vocês podem fazer." Mas John não queria nada daquilo.— Isso não é rock'n'roll para mim, George —, ele disse. — Rock mesmo é curtir um bom som.
Paul, por outro lado, realmente tinha noção da "sinfonia sem costuras", se é que posso chamá-la assim, que desenvolvemos para Pepper. É por isso que Abbey Road tem um lado do que John queria, com faixas bem individualizadas como Come Together, Something e até Octopus's Garden no lado um; enquanto Paul e eu conseguimos um trabalho muito mais contínuo, no estilo de Pepper, no lado dois: Because, You Never Give Me Your Money, Sun King e aí por diante. A sequência que vai de Golden Slumbers até o final do disco continua sendo uma de minhas faixas favoritas.Na época em que paramos para fazer Abbey Road, os anos de loucura já haviam terminado e John ficou feliz em nos ajudar com o segundo lado do álbum: ele escreveu grande parle dele! Because é uma das obras-primas. Não, não tivemos problemas, mas ele ainda preferia seus velhos "rocks".
Muito tempo depois da morte de John, Yoko me disse:
— Eu queria que você tivesse trabalhado com John em seu último álbum — teria sido tão melhor!
Eu achava que Double Fantasy já era muito bom daquele jeito.
— Bem — respondi —, vocês não me pediram!
Mas fiquei surpreso e bastante emocionado por ela realmente acreditar naquilo.
Para quem quiser conferir a postagem sobre "She's Leaving Home" e a verdadeira garota que fugiu de casa, o link é:
12 comentários:
Gostei demais! Demais,mesmo! Não sabia de alguns dialogos,e fiquei espantado!
Mas eu não concordo com uma das primeiras frases: "DIVERSÃO É A ÚNICA COISA QUE O DINHEIRO NÃO CONSEGUE COMPRAR..." rsrsrsrsrs
Muito bom mesmo esse livro !!!
Essencial !!!
Ainda sonho em ver lançado aqui os livros do Mack Lewisohn !!!
Também não concordo, Felipe. Tudo que me diverte custa uma grana lascada. Vamos processar Paul pelo verso! Valdir: Nunca serão lançados aqui. Topas uma empreeitada dura? Vou mandar o e-mail. Ok?
Trabalho com literatura em língua inglesa no CAp-UFRJ e, depois de apresentar os elemantos da ficção, em vez de dar aos alunos um conto ou um poema, dou-lhes esta canção. Os resultados têm sido muito bons.
O texto de George Martin é ótimo. Eu mesmo achava que tínhamos ali um quarteto de cordas, jamais sonhara com um noneto! E achava que a voz dos pais era feita pelo John e George. E continuo achando.
Já o texto de Steve Turner pode ser curioso, mas não faz nenhuma análise interessante: é a "crítica biográfica" da pior espécie. A letra pode ter sido inspirada em uma pessoa real, mas limitá-la a isso é muito empobrecedor.
A letra trata de conflito de gerações, de incomunicabilidade e a música como um todo não tem nada de triste, pois é claro que o narrador coloca-se claramente ao lado da menina, como que a dizer aos pais: "Bem feito pra vocês, que não souberam ver que tinham já uma mulher (ou quase) em casa e ainda a tratavam com uma criança": "Daddy, our baby is gone".
nossa, Martin colocou exatamente o que penso em relação as musicas de Lennon e Paul. Só não concordo quando ele diz que a harpa hoje pra ele, soa forte, pra mim é perfeita!!
É uma das melhores composições de Sir Macca.
Claro que topo Edu !!!!
É só falar !!!
Creio que no caso de FUN na música não se trata literalmente de "diversão".Noto como algo mais amplo,talvez "diversão ou alegria espontâneas". Algo por ai!PS: Não consigo ver defeitos nesta canção.A harpa é maravilhosa!
Fun is the one thing that money can't buy.
You can say that again!
Não dá pra se divertir num ambiente castrador e sufocante. É isso.
"The Virgin Suicides" prova-o. Só que, no filme, ao contrário da canção, as meninas escolheram uma outra fuga...
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