Quando começou essa onda de aparecerem ‘almanaques disso’, ‘almanaques daquilo’, foi publicado um em especial que eu achei o maior barato. Era o “ALMANAQUE DOS ANOS 70” de autoria da jornalista Ana Maria Bahiana. No livrão (416 páginas), a jornalista conduz o leitor para um mergulho numa época de desbunde. Mostra, através de uma ampla pesquisa e análises inteligentes, que os anos 70 são uma década fraturada no meio, aqui e no mundo. A proposta do Almanaque é manter uma perspectiva da época, e não um olhar posterior, saudosista. Mas está tudo nele, muito bem documentado e fartamente ilustrado. "Ao contrário dos anos 80, que são bastante homogêneos, os 70 são idiossincráticos e tribais", explica a autora. Lançado em 2006, é uma tremenda viagem por ícones, estilos, músicas, ídolos, galãs, estrelas, verbos, curtição, esportes, mídias, brinquedos, guloseimas e muito, muito mais sobre tudo que aconteceu naquela década inesquecível. Interessantíssimo é pouco! Aqui, a gente confere uma resenha publicada na Folha de São Paulo, de 1º de junho de 2006, assinada por Eduardo Simões:
Almanaque Anos 70 revive do jeans surrado a guloseimas ilegais - A jornalista Ana Maria Bahiana foi uma típica "gata" dos anos 70. Vestia camisetas com silk screen, jeans surrado da lendária loja Lixão ou saia de "carne-seca", um baratíssimo tecido de algodão cru. Ouvia A Bolha e dançava no Frenetic Dancin' Days, no Rio, ou no Be Bop a Lula, em São Paulo. Seu "conhecimento de causa" lhe rendeu o convite para assinar o "Almanaque Anos 70", que acaba de ser lançado. Com tiragem inicial de 20 mil cópias, o livro pega carona no sucesso de seu antecessor na Ediouro, o "Almanaque Anos 80", de Luiz André Alzer e Mariana Claudino, que vendeu cerca de 100 mil exemplares e ficou 56 semanas na lista de mais vendidos da Folha. Já estão programados os almanaques para os anos 50 (de Sérgio Augusto, em dezembro) e 90 (de Silvio Essinger, em 2007).
Ao longo de 416 páginas, ilustradas com cerca de 500 imagens, a década aos olhos de Bahiana aparece dividida em duas partes (de 1970 a 1974 e de 1975 a 1979) e espelhada em oito temas (ícones, estilo, música, verbo, artes & manhas, curtição, esporte e mídia). "Eu me tranquei por um mês no Arquivo da Cidade [Rio] e mandei descer tudo dos anos 70. Não me interessava tanto pela notícia, mas pelo avesso dela, a foto, o classificado, o anúncio", conta Bahiana, que tem mais dois projetos "setentistas" na manga: o filme "1972", de que é roteirista e que estréia no segundo semestre, e uma "trilha sonora" do livro, com Raul Seixas, Novos Baianos etc., que sai no fim do mês.
No livro, Bahiana retrata os anos 70 através de ícones locais (Leila Diniz grávida, de biquíni) e internacionais (Farrah Fawcett, de "As Panteras", "o cabelo mais copiado do mundo"). E relembra que, no esporte, a década começou com o tricampeonato na Copa do México: "Jairzinho, Gerson, Tostão e Pelé são os ícones da época. Mas o Brasil torcia trincado porque a ditadura explorava a seleção", diz a jornalista, que recorda ainda o início da época de ouro do Flamengo, com Zico, o bicampeonato do Palmeiras com Ademir da Guia e a quebra de um jejum de 22 anos do Corinthians, em 1977.
Na música, Bahiana diz que encontrou o "baú do tesouro", com álbuns "essenciais" (como "Transa", de Caetano) e "shows que todo o mundo comentou", como Refestança, com Rita Lee e Gil. Já a política aparece dispersa no almanaque. Entre os ícones políticos, o hoje presidente Lula aparece na capa de um exemplar do jornal gay "Lampião da Esquina", em que fala sobre "greves, bonecas e feministas", em julho de 1979. "Lula começa a aparecer apenas no fim da década, ele é mais uma figura dos anos 80. Nos 70, há duas figuras: Vladimir Herzog, cuja morte sacode a mídia, e Gabeira, que era o 'poster boy' da Anistia com a sua tanga". O capítulo da "curtição" foi o mais curtido por Bahiana. Nele, a jornalista identifica uma "expressão totalmente anos 70", no que chama de "guloseimas legais e ilegais, viagens físicas ou não, tudo que dava prazer".
E aqui, com a exclusividade de sempre, a gente confere o prefácio do livrão escrito pela própria autora Ana Maria Bahiana.
Quem viveu intensamente os anos 70 está condenado a não se lembrar deles. Pelo menos não inteiramente. Há uma ironia tão grande nisso, uma ironia tão... anos 70... Porque foi uma década de experiências, com muito pouca intermediação. Não importava, realmente, se havia ou não registro, memória, inventário do que se experimentava. A captura do momento fugaz, em toda a sua intensidade, era privilégio e tormento de cada uma, de cada um. Não eram experiências para serem lavradas em ata. Eram para ser carregadas no mais fundo da alma. Uma coisa interessante acontece quando nos abandonamos assim tão completamente ao vôo do instante: ele assume as características do sonho, algo muito nítido guardado numa outra realidade que não conseguimos mais habitar inteiramente mas temos certeza de que existe, existiu. Na nitidez da distância, os anos 70 aparecem com uma importância que não se suspeitava: as raízes das delícias e dos horrores do novo século estão inteirinhas ali. O triunfo do corpo, o terror político. Interatividade e crise do petróleo. Fartura, escassez. Aiatolás no Irã, um mentiroso na Casa Branca. A possibilidade de uma sociedade mais justa, com lugar para as vozes de mulheres, homossexuais, crianças, jovens, místicos, alternativos, e a realidade de sociedades em que nada disso era sequer o esboço de uma vontade. Ao organizar fragmentos e vestígios desses portentos e experiências, quis em primeiro lugar, como nos 70, evitar a intermediação. Quis salpicar toda a viagem com o material de origem, deixar os personagens, os incidentes, os detalhes falarem por si mesmos, com suas próprias vozes. Por isso, também, não há menções ao futuro, ao que acontece depois com nossos personagens. É como se nada existisse depois de 1979, porque, em 1979, nada existia depois, apenas possibilidades e alguns medos. Pode-se abrir este Almanaque e lê-lo em qualquer pedaço, em qualquer ordem — cada experiência é uma experiência. Mas, para efeito de organização, ele se divide como a década, nitidamente em dois. Porque os 70 não são apenas individuais, idiossincráticos, tribalizados: eles também são duas décadas em uma. No Brasil e no mundo, acontecimentos claros balizam as duas décadas que são os 70. A primeira delas é o rescaldo dos 60, e seu eixo de tensão é polarizado — caretas de um lado, desbundados do outro. Sistema e alternativa. Superfície e subterrâneo. No Brasil, o subterrâneo é mais embaixo: de 1970 a 1974 vive-se sob a sombra do AI-5, no governo Médici, no qual quase tudo é proibido. No exterior, os primeiros 70 são os anos Nixon, a agonia do militarismo americano no Sudeste Asiático. Watergate, a derrota no Vietnã e a escalada do poder da Opep marcam -o final da primeira década lá fora. É uma era psicodélica: as drogas em uso são as da calma, da reflexão, da viagem. É uma década de silêncio, forçado ou escolhido. A segunda década é a pré-estreia dos 80. A diversão é sua palavra de ordem, a dança, sua expressão. No Brasil, são os anos da abertura, culminando com a anistia e o governo Figueiredo. A tensão se desfaz em vários núcleos: discotequeiros e punks, roqueiros e naturebas, surfistas e playboys. É uma era trincada: a cocaína torna-se onipresente a partir de 1975, mudando tudo — a percepção do tempo, a estrutura do crime, a intensidade e o ritmo da música, as deformações do afeto, a distribuição do poder nas cidades. É uma década de ruído. Para balizar a jornada, escolhi David Bowie, alguém que soube transformar a experiência de viver em obra de arte, e a obra de arte em experiência de vida. Olhando para David Bowie, é sempre possível saber onde se está na década. Enfim: não é um mapa, é uma confeitaria. Não é necessário nem ter vivido então ou sequer ter nascido por lá. O tempo fica e está sempre disponível. Nós é que passamos. Se liga nessa.
Um comentário:
Muito legal!
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